Macunaíma
– Mário de Andrade
Capítulo I - Macunaíma - Macunaíma, “herói de nossa gente” nasceu à margem do Uraricoera,
em plena floresta amazônica. Descendia da tribo dos Tapanhumas e, desde a
primeira infância, revelava-se como um sujeito “preguiçoso”. Ainda menino,
busca prazeres amorosos com Sofará, mulher de seu irmão Jiguê, que só lhe havia
dado pra comer as tripas de uma anta, caçada por Macunaíma numa armadilha
esperta. Nas várias transas (“brincadeiras”) com Sofará, Macunaíma
transforma-se num príncipe lindo, iniciando um processo constante de
metamorfoses que irão ocorrer ao longo da narrativa: índio negro, vira branco,
inseto, peixe e até mesmo um pato, dependendo das circunstâncias.
Capítulo II - Maioridade - De tanto aprontar, foi
abandonado pela mãe no meio do mato. Tremelicando, com as perninhas em arco,
Macunaíma botou o pé na estrada até que topou com o Curupira e perguntou-lhe
como faria para voltar pra casa. Maliciosamente, o Curupira ensina-lhe um
caminho errado que Macunaíma, por preguiça, não seguiu. Escapando do monstro, o
herói topou com uma voz que cantava uma toada lenta: era a cotia, que depois de
ouvir o piá contar como enganara o Curupira, jogou-lhe em cima calda envenenada
de mandioca. Isto fez Macunaíma crescer, atingindo o “tamanho dum homem
taludo”.
Capítulo
III – Ci, Mãe do Mato
- Encontra Ci, a Mãe do Mato e inventa com ela lindas e novas maneiras de gozos
de amor. O resultado desse idílio é o nascimento de um curumi, que morreu
prematuramente depois de mamar no único peito de Ci, envenenado pela Cobra
Preta. Enterrado o filho, Ci também resolveu deixar este mundo. Deu ao herói
sua muiraquitã famosa e subiu pro céu por um cipó, transformando-se numa
estrela.
Capitulo
IV – Boiúna Luna
- Tomado de tristeza, Macunaíma despediu-se das Icamiabas e partiu rumo
às matas misteriosas. No caminho, encontra Capei, monstro fantástico que abre a
goela e solta uma nuvem de marimbondos. Nas lutas contra o monstro, Macunaíma
perde seu talismã e fica sabendo, através de um uirapuru, que a tartaruga que
engolira sua pedra tinha sido apanhada por um mariscador. Este vendera a
muiraquitã a um rico fazendeiro chamado Venceslau Pietro Pietra, proprietário
de uma mansão na rua Maranhão, em São Paulo. Macunaíma resolve, então, vir para
a capital paulista recuperar sua muiraquitã.
Capítulo
V - Piaimã
- O herói junta seus irmãos e desce o Araguaia, com sua esquadra de igarités
cheias de cacau. Em São Paulo, fica sabendo que Venceslau Pietro Pietra era o
gigante Piaimã, comedor de gente, companheiro de uma caapora velha chamada
Ceiuci, também antropófaga e muito gulosa. Esse capítulo apresenta uma das
passagens mais saborosas do romance: a chegada de Macunaíma e seus irmãos à
cidade de São Paulo. Nesse momento, Mário de Andrade inverte os relatos
quinhentistas da Literatura Informativa. Aqui é o índio que se depara com a
dita “civilização” e procura assimilá-la, digerindo-a com suas próprias enzimas
culturais.
Capítulo
VI – A francesa e o gigante - Depois de uma tentativa de aproximação
frustrada, Macunaíma resolve se vestir de francesa para conquistar Venceslau
Pietro Pietra e reconquistar sua muiraquitã. O regatão não emprestou a pedra
nem quis vendê-la. Mas deixou claro que poderia dá-la se a francesa resolvesse
“brincar” com ele… Muito inquieto, Macunaíma foge, percorrendo, em louca
correria, grande parte do território brasileiro.
Capítulo
VII - Macumba
- Como não tivesse força suficiente pra matar o gigante, Macunaíma vem para o
Rio de Janeiro procurar o terreiro de macumba da tia Ciata. Pediu à macumbeira
vários castigos pro gigante Piaimã que, além de receber a chifrada de um touro
selvagem, é ferroado por quarenta mil formigas-de-fogo.
Capítulo
VIII – Vei, a Sol - É também no Rio de Janeiro que Macunaíma reencontra a
Vei, a deusa-sol que pretendia casar uma de suas três filhas com o herói.
Embora tivesse prometido, Macunaíma não cumpriu a palavra empenhada: logo que
anoiteceu, convidou uma portuguesa e brincou com ela na jangada. Depois foram
descansar num banco da avenida Beira-mar, no Flamengo, quando surgiu
Mianiquê-Teibê, monstro de garras enormes com olhos no lugar dos peitos e duas
bocarras nos pés, de dentes aguçados. Macunaíma saiu correndo pela praia; o
monstro comeu a portuga e desapareceu.
Capítulo
IX – Carta pras Icamiabas - O herói retorna a São Paulo e, saudoso,
resolve escrever uma “carta pras icamiabas”, relatando como era sua vida em São
Paulo. Faz, num satírico estilo beletrista, uma descrição da agitada vida
paulistana, com seus arranha-céus, ruas “habilmente estreitas” cheias de gente,
cinemas, casas de moda, ônibus, estátuas e jardim. Nesta pernóstica missiva, o
corrupto Imperador faz questão de detalhar para as amazonas a prática constante
de amores pecaminosos, tanto que ele até pensa em tirar proveito da exploração
do lenocínio. Critica o capitalismo selvagem dos paulistas locomotivas e dos
italianos arrivistas, destacando, horrorizado, ao final, uma curiosidade
original deste povo: “falam numa língua e escrevem noutra”. Depois de abençoar
as suas súditas, termina a carta, com a maior desfaçatez, pedindo mais uma
“gaita” pras suas fiéis icamiabas.
Capítulo
X – Pauí-pódole
- A surra que Venceslau Pietro Pietra recebeu de Exu foi tão violenta que ele
ficou meses numa rede, travado pelos suplícios a que foi submetido. Sem poder
readquirir a muiraquitã, Macunaíma ocupou-se então do complicado estudo das
duas línguas da terra, “o brasileiro falado e o português escrito”. Interrompe
um mulato pedante que fazia um verborrágico discurso sobre o Cruzeiro do Sul,
falando que aquelas quatro estrelas que brilham no vasto campo do céu são, na
verdade, o Pai do Mutum, figura zoocosmológica que teve seu corpo de ave
metamorfoseado numa constelação.
Capítulo
XI – A velha Ceiuci - Depois de ter passado a noite brincando com a patroa
da pensão, Macunaíma falou pros seus irmãos Maanape e Jiguê que tinha achado
“rasto fresco de tapir”, em pleno asfalto paulistano, junto à Bolsa de
Mercadorias. Induziu seus irmãos a caçarem o animal e estes quase acabam sendo
linchados pela multidão que se aglomerou pra assistir à caçada. Um estudante
subiu na capota de um automóvel e discursou contra Maanape e Jiguê. Foi
interrompido por Macunaíma que, tomado por um efêmero acesso de fraternidade,
resolveu defender os irmãos entrando no meio da multidão e distribuindo
rasteiras e cabeçadas até ser preso por um “grilo”, soldado da antiga
guarda-civil de São Paulo. No meio da confusão, o herói conseguiu fugir e foi
ver como passava o gigante Venceslau Pietro Pietra, ainda “convalescendo da
sova apanhada na macumba”. Faz uma aposta com o curumi Chuvisco pra ver quem
conseguia assustar o gigante e sua família. Perde a aposta e resolve fazer uma
pescaria. Como não tivesse anzol, o herói se transforma numa “piranha feroz”
pra cortar a linha de um inglês que pescava a seu lado. Acontece que a velha
feiticeira Ceiuci, mulher do gigante, também costumava pescar no igarapé Tietê e
prende o herói. Ao ser pescado pela tarrafa da feiticeira, Macunaíma vira um
pato que devia ser logo comido. Além de brincar com a filha mais moça de
Ceiuci, ludibria-a e foge, montado “num cavalo castanho-pedrez que pra carreira
Deus o fez”. É uma fuga espetacularmente surrealista: num momento está em
Manaus e noutro em Mendoza, na Argentina.
Capítulo
XII – Tequeteque, chupinzão e a injustiça dos homens - Desesperado porque ainda
não conseguira reaver a muiraquitã, Macunaíma se disfarça de pianista e tenta,
junto ao governo, uma bolsa de estudos na Europa, para onde Venceslau Pietro
Pietra havia viajado. Não conseguindo a bolsa, sai a viajar com os manos pelo
Brasil pra ver se acha “alguma panela com dinheiro enterrado”. Nestas andanças,
encontra um macaco comendo coquinho baguaçu. Como estava com fome, o herói
pergunta ao macaco o que estava comendo e ouve a seguinte resposta cínica: “--
Estou quebrando os meus toaliquiçus pra comer.” Macunaíma resolveu imitá-lo,
agarrou um “paralelepípedo e juque! nos toaliquiçus. Caiu morto.” Só conseguiu
ressuscitar graças à feitiçaria de Maanape, que colocou no lugar do órgão
destruído dois cocos-da-baía. Depois “assoprou fumaça de cachimbo no
defunto-herói” e este reanimou-se, tomando guaraná e uma dose de pinga.
Capítulo
XIII – A piolhenta de Jiguê - Jiguê resolveu se amulherar com Suzi,
cunhatã muito velhaca que passava todo o tempo namorando Macunaíma. Jiguê
descobre, fica furioso, dá uma baita surra no herói e expulsa Suzi com uma
porretada. Levada por seus piolhos, Suzi vai “pro céu virada na estrela que
pula”.
Capítulo
XIV - Muiraquitã - Maanape comunica ao herói a volta de Venceslau Pietro
Pietra. Macunaíma enche-se de coragem e decide matar o gigante. Come cobra e,
com muita esperteza, coloca Piaimã balançando num cipó de japecanga, embala-o
com força e o gigante acaba caindo dentro de um buraco onde Ceiuci, a velha
caapora, preparava uma imensa macarronada. O gigante cai na água fervente e o
cheiro de seu couro cozido, além de matar todos os ticoticos da cidade, provoca
o desmaio de Macunaíma. Quando se recupera, o herói apanha a muiraquitã e volta
pra pensão.
Capítulo
XV – A pacuera de Oibê - Morto Piaimã e reconquistada sua
muiraquitã, Macunaíma, Maanape e Jiguê são novamente índios e resolvem voltar para
o distante Uraricoera. O herói levava no peito “uma satisfação imensa”, mas não
deixa de ter saudade de São Paulo. Tanto que levava consigo todas as coisas que
mais o haviam entusiasmado na “civilização paulista”: um casal de legornes, um
revólver Smith-Wesson e um relógio Patek. Um bando de aves forma uma grande
tenda de asas coloridas que protegem o Imperador do Mato-Virgem. Nesta viagem
de volta feliz, o herói teve novas aventuras amorosas, lembrando-se com saudade
da vida dissoluta que levara em São Paulo: encontra-se com Iriqui (antiga
companheira de Jiguê) e com uma linda princesa que tinha sido transformada num
pé de carambola. Com sua muiraquitã, o herói faz uma mandinga e o caramboleiro
vira “uma princesa muito chique”, com quem tem vontade de brincar, mas não
pode, pois são perseguidos pelo Minhocão Oibê. Graças a uma nova mandinga, o
herói transforma Oibê num cachorro-do-mato, de rabo cabeludo e goela
escancarada. Como Macunaíma agora só queria brincar com a princesa, Iriqui fica
tristíssima e sobe “pro céu, chorando luz, virada numa estrela”.
Capítulo
XVI - Uraricoera - Finalmente, chega ao Uraricoera natal e, ao passar
por um lugar chamado Pai da Tocandeira, reconhece suas raízes e chora: a maloca
da tribo era agora uma tapera arruinada. Uma sombra leprosa devora seus irmãos
e a princesa, e o herói fica “defunto sem choro, no abandono completo”,
empaludado e sem forças para construir uma oca. Ata sua rede em dois cajueiros
no alto da barranca junto do rio e assim passa seus dias “caceteado e comendo
cajus”. Todas as aves também o abandonam, ficando somente um papagaio pra quem
o herói conta todos os casos que lhe tinham acontecido. Graças a este papagaio
é que se salvou do esquecimento a história do herói, parido por uma índia
tapanhumas.
Capítulo
XVII – Ursa maior - Num dia de janeiro de muito calor, o herói acorda
sentindo umas “cosquinhas”, que até lhe parecem feitas “por mãos de moça”. Era
a última vingança de Vei, a Sol, tramando para liquidá-lo de vez. Macunaíma
lembra-se de que há muito não brincava e vai tomar banho num lagoão, pensando
que a água fria viria amortecer seus desejos de amor. O herói, encaminhando-se
para a água, enxerga lá no fundo “uma cunhã lindíssima”, ora branca de cabelos
louros, ora morena de cabelos negros, que começa a tentá-lo com danças e
meneios. Macunaíma hesita, temeroso, mas acaba mergulhando na lagoa, desvairado
pelos encantos irresistíveis da uiara. Esta o mutila, devorando-lhe uma perna,
os brincos, os cocos-da-baía, as orelhas, os dedões, o nariz e os beiços.
Desaparece também com sua muiraquitã: o herói pula e dá “um grito que encurtou
o tamanho do dia”. Tem ainda força para lançar plantas venenosas no lagoão,
matando peixes, piranhas e botos que lá estavam. No afã de recuperar seus
tesouros, Macunaíma abre-lhe as barrigas e o que encontra reprega no corpo
mutilado, com sapé e cola de peixe. Não consegue, todavia, reconquistar a perna
nem a muiraquitã, “engolidas pelo monstro Ururau”. E assim tudo se acaba.
Macunaíma, mutilado, vai bater na casa do Pai Mutum, que, com dó dele, faz uma
feitiçaria e transforma-o na constelação da Ursa Maior. “Ia pro céu viver com a
marvada. Ia ser o brilho bonito mas inútil porém de mais uma constelação.”
Neste balanço que Macunaíma faz de sua existência, ele dialoga com sua
consciência e deixa sua mensagem para a posteridade: “Não vim no mundo para ser
pedra”. A pedra simboliza disciplina rígida, método, lapidação de caráter,
traços que Macunaíma, a própria encarnação da esperteza e da improvisação,
nunca quis assumir.
Epílogo
“Acabou-se a história e morreu a vitória”. Os filhos da tribo dos Tapanhumas “se acabaram de um em um”. “Uma feita um homem foi lá” e, rompendo o “silêncio enorme” que “dormia à beira-rio do Uraricoera”, ouve-se:
-- “Curr-pac, papac! curr-pac, papac!…”
Era o papagaio ao qual Macunaíma havia contado toda a sua história. “Então o pássaro principiou falando numa fala mansa, muito nova, muito!”
“Tudo ele contou pro homem e depois abriu asa rumo de Lisboa. E o homem sou eu, minha gente, e eu fiquei pra vos contar a história. Por isso que vim aqui. Me acocorei em riba destas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na violinha e em toques rasgado botei a boca no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de Macunaíma, herói da nossa gente”. Era o próprio Mário de Andrade. “Tem mais não”.
“Acabou-se a história e morreu a vitória”. Os filhos da tribo dos Tapanhumas “se acabaram de um em um”. “Uma feita um homem foi lá” e, rompendo o “silêncio enorme” que “dormia à beira-rio do Uraricoera”, ouve-se:
-- “Curr-pac, papac! curr-pac, papac!…”
Era o papagaio ao qual Macunaíma havia contado toda a sua história. “Então o pássaro principiou falando numa fala mansa, muito nova, muito!”
“Tudo ele contou pro homem e depois abriu asa rumo de Lisboa. E o homem sou eu, minha gente, e eu fiquei pra vos contar a história. Por isso que vim aqui. Me acocorei em riba destas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na violinha e em toques rasgado botei a boca no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de Macunaíma, herói da nossa gente”. Era o próprio Mário de Andrade. “Tem mais não”.
ANÁLISE DA OBRA
Macunaíma e a renovação da linguagem literária
Publicado em 1928, numa
tiragem de apenas oitocentos exemplares (Mário de Andrade não conseguira
editor), Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, é uma das obras pilares
da cultura brasileira.
Numa narrativa fantástica e picaresca, ou, melhor dizendo, “malandra”, herdeira direta das Memórias de um Sargento de Milícias (1852) de Manuel Antônio de Almeida, Mário de Andrade reelabora literariamente temas de mitologia indígena e visões folclóricas da Amazônia e do resto do país, fundando uma nova linguagem literária, saborosamente brasileira.
Macunaíma - bem como Memórias Sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte Grande (1933), de Oswald de Andrade - foram obras revolucionárias na medida em que desafiaram o sistema cultural vigente, propondo, através de uma nova organização da linguagem literária, o lançamento de outras informações culturais, diferentes em tudo das posições mantidas por uma sociedade dominada até então pelo reacionarismo e o atraso cultural generalizado.
Nacionalista crítico, sem xenofobia, Macunaíma é a obra que melhor concretiza as propostas do movimento da Antropofagia (1928), criado por Oswald de Andrade, que buscava uma relação de igualdade real da cultura brasileira com as demais. Não a rejeição pura e simples do que vem de fora, mas consumir aquilo que há de bom na arte estrangeira. Não evitá-la, mas, como um antropófago, comer o que mereça ser comido.
O tom bem humorado e a inventividade narrativa e lingüística fazem de Macunaíma uma das obras modernistas brasileiras mais afinadas com a literatura de vanguarda no mundo, na sua época. Nesse romance encontram-se dadaísmo, futurismo, expressionismo e surrealismo aplicados a um vasto conhecimento das raízes da cultura brasileira.
Numa narrativa fantástica e picaresca, ou, melhor dizendo, “malandra”, herdeira direta das Memórias de um Sargento de Milícias (1852) de Manuel Antônio de Almeida, Mário de Andrade reelabora literariamente temas de mitologia indígena e visões folclóricas da Amazônia e do resto do país, fundando uma nova linguagem literária, saborosamente brasileira.
Macunaíma - bem como Memórias Sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte Grande (1933), de Oswald de Andrade - foram obras revolucionárias na medida em que desafiaram o sistema cultural vigente, propondo, através de uma nova organização da linguagem literária, o lançamento de outras informações culturais, diferentes em tudo das posições mantidas por uma sociedade dominada até então pelo reacionarismo e o atraso cultural generalizado.
Nacionalista crítico, sem xenofobia, Macunaíma é a obra que melhor concretiza as propostas do movimento da Antropofagia (1928), criado por Oswald de Andrade, que buscava uma relação de igualdade real da cultura brasileira com as demais. Não a rejeição pura e simples do que vem de fora, mas consumir aquilo que há de bom na arte estrangeira. Não evitá-la, mas, como um antropófago, comer o que mereça ser comido.
O tom bem humorado e a inventividade narrativa e lingüística fazem de Macunaíma uma das obras modernistas brasileiras mais afinadas com a literatura de vanguarda no mundo, na sua época. Nesse romance encontram-se dadaísmo, futurismo, expressionismo e surrealismo aplicados a um vasto conhecimento das raízes da cultura brasileira.
A
rapsódia
Mário de Andrade nos conta que escreveu Macunaíma em seis dias, deitado, bem à maneira de seu herói, em uma rede na “Chácara de Sapucaia”, em Araraquara, SP. Diz ainda: “Gastei muito pouca invenção neste poema fácil de escrever (…). Este livro afinal não passa duma antologia do folclore brasileiro.” A obra, composta em apenas seis dias, é fruto de anos de pesquisa das lendas e mitos indígenas e folclóricos que o autor reúne utilizando a linguagem popular e oral de várias regiões do Brasil.
Trata-se, por isso mesmo, de uma rapsódia. Assim os gregos designavam obras como a Ilíada ou a Odisséia de Homero, que reúnem séculos de narrativas poéticas orais, resumindo as tradições folclóricas de todo um povo. Para o musicólogo Mário de Andrade, o termo certamente remete às fantasias instrumentais que utilizam temas e processos de composição improvisada, tirados de cantos tradicionais ou populares, como as rapsódias húngaras de Liszt.
Segundo Oswald de Andrade, “Mário escreveu nossa Odisséia e criou duma tacapada o herói cíclico e por cinqüenta anos o idioma poético nacional”.
É importante notar que, além de relatar inúmeros mitos recolhidos e diversas fontes populares, Mário de Andrade também inventa, de maneira irônica, vários mitos da modernidade. Apresenta, entre outros, os mitos da criação do futebol, do truco, do gesto da “banana” ou do termo “Vá tomar banho!” Há, em Macunaíma, portanto, além da imensa pesquisa, muita invenção.
Mário de Andrade nos conta que escreveu Macunaíma em seis dias, deitado, bem à maneira de seu herói, em uma rede na “Chácara de Sapucaia”, em Araraquara, SP. Diz ainda: “Gastei muito pouca invenção neste poema fácil de escrever (…). Este livro afinal não passa duma antologia do folclore brasileiro.” A obra, composta em apenas seis dias, é fruto de anos de pesquisa das lendas e mitos indígenas e folclóricos que o autor reúne utilizando a linguagem popular e oral de várias regiões do Brasil.
Trata-se, por isso mesmo, de uma rapsódia. Assim os gregos designavam obras como a Ilíada ou a Odisséia de Homero, que reúnem séculos de narrativas poéticas orais, resumindo as tradições folclóricas de todo um povo. Para o musicólogo Mário de Andrade, o termo certamente remete às fantasias instrumentais que utilizam temas e processos de composição improvisada, tirados de cantos tradicionais ou populares, como as rapsódias húngaras de Liszt.
Segundo Oswald de Andrade, “Mário escreveu nossa Odisséia e criou duma tacapada o herói cíclico e por cinqüenta anos o idioma poético nacional”.
É importante notar que, além de relatar inúmeros mitos recolhidos e diversas fontes populares, Mário de Andrade também inventa, de maneira irônica, vários mitos da modernidade. Apresenta, entre outros, os mitos da criação do futebol, do truco, do gesto da “banana” ou do termo “Vá tomar banho!” Há, em Macunaíma, portanto, além da imensa pesquisa, muita invenção.
O
herói sem nenhum caráter
Foi, portanto, na obra do etnólogo alemão que Mário de Andrade, paradoxal e muito antropofagicamente, encontrou a essência do brasileiro. O próprio autor de Macunaíma, em prefácio que nunca chegou a publicar com o livro, nos conta como ocorreu a descoberta:
“O que me interessou por Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros. Ora depois de pelejar muito verifiquei uma coisa que me parece certa: o brasileiro não tem caráter. Pode ser que alguém já tenha falado isso antes de mim porém a minha conclusão é uma novidade para mim porque tirada da minha experiência pessoal. E com a palavra caráter não determino apenas uma realidade moral não, em vez entendo a entidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes na ação exterior no sentimento na língua na História na andadura, tanto no bem como no mal. O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional.
Os franceses têm caráter e assim os jorubas e os mexicanos. Seja porque civilização própria, perigo iminente, ou consciência de séculos tenham auxiliado, o certo é que esses uns têm caráter. Brasileiro não. Está que nem o rapaz de vinte anos: a gente mais ou menos pode perceber tendências gerais, mas ainda não é tempo de afirmar coisa nenhuma. […] Pois quando matutava nessas coisas topei com Macunaíma no alemão de Koch-Grünberg. E Macunaíma é um herói surpreendentemente sem caráter. (Gozei)”
As metamorfoses pelas quais passa a personagem, de sabor surrealista, podem muito bem ser associadas à sua “falta de caráter”, assim como o fascínio que revela pela “língua de Camões”, na Carta pras Icamiabas.
Foi, portanto, na obra do etnólogo alemão que Mário de Andrade, paradoxal e muito antropofagicamente, encontrou a essência do brasileiro. O próprio autor de Macunaíma, em prefácio que nunca chegou a publicar com o livro, nos conta como ocorreu a descoberta:
“O que me interessou por Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros. Ora depois de pelejar muito verifiquei uma coisa que me parece certa: o brasileiro não tem caráter. Pode ser que alguém já tenha falado isso antes de mim porém a minha conclusão é uma novidade para mim porque tirada da minha experiência pessoal. E com a palavra caráter não determino apenas uma realidade moral não, em vez entendo a entidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes na ação exterior no sentimento na língua na História na andadura, tanto no bem como no mal. O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional.
Os franceses têm caráter e assim os jorubas e os mexicanos. Seja porque civilização própria, perigo iminente, ou consciência de séculos tenham auxiliado, o certo é que esses uns têm caráter. Brasileiro não. Está que nem o rapaz de vinte anos: a gente mais ou menos pode perceber tendências gerais, mas ainda não é tempo de afirmar coisa nenhuma. […] Pois quando matutava nessas coisas topei com Macunaíma no alemão de Koch-Grünberg. E Macunaíma é um herói surpreendentemente sem caráter. (Gozei)”
As metamorfoses pelas quais passa a personagem, de sabor surrealista, podem muito bem ser associadas à sua “falta de caráter”, assim como o fascínio que revela pela “língua de Camões”, na Carta pras Icamiabas.
Foco Narrativo
Embora predomine o foco da 3a pessoa, Mário de Andrade inova utilizando a técnica cinematográfica de cortes bruscos no discurso do narrador, interrompendo-o para dar vez à fala dos personagens, principalmente Macunaíma. Esta técnica imprime velocidade, simultaneidade e continuidade à narrativa. Exemplo:
“Lá chegado ajuntou os vizinhos, criados a patroa cunhãs datilógrafos estudantes empregados-públicos, muitos empregados-públicos! Todos esses vizinhos e contou pra eles que tinha ido caçar na feira do Arouche e matara dois…
-- …mateiros, não eram viados mateiros, não, dois viados catingueiros que comi com os manos. Até vinha trazendo um naco pra vocês mas porém escorreguei na esquina, caí derrubei o embrulho e o cachorro comeu tudo.”
Embora predomine o foco da 3a pessoa, Mário de Andrade inova utilizando a técnica cinematográfica de cortes bruscos no discurso do narrador, interrompendo-o para dar vez à fala dos personagens, principalmente Macunaíma. Esta técnica imprime velocidade, simultaneidade e continuidade à narrativa. Exemplo:
“Lá chegado ajuntou os vizinhos, criados a patroa cunhãs datilógrafos estudantes empregados-públicos, muitos empregados-públicos! Todos esses vizinhos e contou pra eles que tinha ido caçar na feira do Arouche e matara dois…
-- …mateiros, não eram viados mateiros, não, dois viados catingueiros que comi com os manos. Até vinha trazendo um naco pra vocês mas porém escorreguei na esquina, caí derrubei o embrulho e o cachorro comeu tudo.”
(Cap. XI – A Velha Ceiuci)
Espaço e tempo
As estripulias sucessivas
de Macunaíma são vividas num espaço mágico, próprio da atmosfera fantástica e
maravilhosa em que se desenvolve a narrativa. Em seu Roteiro de Macunaíma,
mestre Cavalcanti Proença afirma que Macunaíma se aproxima da epopéia medieval,
pois “tem de comum com aqueles heróis a sobre-humanidade e o maravilhoso.
Está fora do espaço e do tempo. Por esse motivo pode realizar aquelas fugas
espetaculares e assombrosas em que, da capital de São Paulo foge para a Ponta
do Calabouço, no Rio, e logo já está em Guarajá-Mirim, nas fronteiras de Mato
Grosso e Amazonas para, em seguida, chupar manga-jasmim em Itamaracá de
Pernambuco, tomar leite de vaca zebu em Barbacena, Minas Gerais, decifrar
litóglifos na Serra do Espírito Santo e finalmente se esconder no oco de um
formigueiro, na Ilha do Bananal, em Goiás”.
Macunaíma é um personagem outsider, enquanto marginal, anti-herói, fora-da-lei, na medida em que se contrapõe a uma sociedade moderna, organizada em um sistema racional, frio e tecnológico. Assim, o tempo é totalmente subvertido na narrativa. O herói do presente entra em contato com figuras do passado, estabelecendo-se um curioso “diálogo com os mortos”: Macunaíma fala com João Ramalho (séc. XVI), com os holandeses (séc. XVII), com Hércules Florence (séc. XIX) e com Delmiro Gouveia (pioneiro da usina hidrelétrica de Paulo Afonso e industrial nordestino que criou a primeira fábrica nacional de linhas de costura).
Macunaíma é um personagem outsider, enquanto marginal, anti-herói, fora-da-lei, na medida em que se contrapõe a uma sociedade moderna, organizada em um sistema racional, frio e tecnológico. Assim, o tempo é totalmente subvertido na narrativa. O herói do presente entra em contato com figuras do passado, estabelecendo-se um curioso “diálogo com os mortos”: Macunaíma fala com João Ramalho (séc. XVI), com os holandeses (séc. XVII), com Hércules Florence (séc. XIX) e com Delmiro Gouveia (pioneiro da usina hidrelétrica de Paulo Afonso e industrial nordestino que criou a primeira fábrica nacional de linhas de costura).
A Carta pras Icamiabas
Precisamente no meio da
narrativa, no Capítulo IX da obra, encontramos um “Intermezzo”, como o chamava
o autor. Trata-se da “Carta pras Icamiabas”, sátira feroz ao beletrismo
parnasiano da época. Macunaíma escreve a suas súditas para descrever-lhes a cidade
de “São Paulo construída sobre sete colinas, à feição tradicional de Roma, a
cidade cesárea, “capita” da Latinidade de que provimos". Mário
de Andrade inverte, aqui, portanto, os relatos dos cronistas quinhentistas,
como Pero Vaz de Caminha, Gabriel Soares de Sousa ou Pero de Magalhães Gandavo.
Agora é o índio que descreve a terra desconhecida para seus pares distantes.
Sem caráter, Macunaíma o faz tomando emprestada a linguagem rebuscada de um Rui
Barbosa ou de um Coelho Neto. A paródia torna-se hilariante devido aos erros
grosseiros cometidos pelo falso erudito , que escreve asneiras como “testículos
da Bíblia” por “versículos”ou “ciência fescenina” por “feminina”.
Com seu estilo pomposo, Macunaíma enuncia, na Carta pras Icamiabas, o slogan que irá adotar para definir os problemas do Brasil:
“Tudo vai num descalabro sem comedimento, estamos corroídos pelo morbo e pelos miriápodes! Em breve seremos novamente uma colônia da Inglaterra ou da América do Norte!... Por isso e para eterna lembrança destes paulistas, que são a única gente útil do país, e por isso chamados de Locomotivas, nos demos ao trabalho de metrificarmos um dístico, em que se encerram os segredos de tanta desgraça:
Com seu estilo pomposo, Macunaíma enuncia, na Carta pras Icamiabas, o slogan que irá adotar para definir os problemas do Brasil:
“Tudo vai num descalabro sem comedimento, estamos corroídos pelo morbo e pelos miriápodes! Em breve seremos novamente uma colônia da Inglaterra ou da América do Norte!... Por isso e para eterna lembrança destes paulistas, que são a única gente útil do país, e por isso chamados de Locomotivas, nos demos ao trabalho de metrificarmos um dístico, em que se encerram os segredos de tanta desgraça:
"POUCA SAÚDE E MUITA SAÚVA,
OS MALES DO BRASIL SÃO."
OS MALES DO BRASIL SÃO."
Este dístico é que
houvemos por bem escrevermos no livro de Visitantes Ilustres do Instituto
Butantã, quando foi da nossa visita a este estabelecimento famoso na
Europa."
O slogan recupera conhecido poema de Gregório de Matos (1636-1695), em que o poeta satírico baiano enumera as vilezas do país, terminando cada estrofe com o irônico refrão: “Milagres do Brasil são.” Remete, também, à frase do cronista Saint-Hilaire: “Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”.
O slogan recupera conhecido poema de Gregório de Matos (1636-1695), em que o poeta satírico baiano enumera as vilezas do país, terminando cada estrofe com o irônico refrão: “Milagres do Brasil são.” Remete, também, à frase do cronista Saint-Hilaire: “Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”.
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